Este texto não é uma crítica, nem uma resenha, trazendo consistência à proposta esquizofrênica desta newsletter.Já tinha algum tempo que eu estava curioso sobre o romance de Bruna Maia, Com todo o meu rancor. Me tornei admirador da autora pelos quadrinhos, acompanhando nas redes sociais e últimamente em sua coluna na Folha/UOL.
Para além do humor afiado, me chamava a atenção suas sacadas críticas. Aprendi muito com a produção de Bruna, seja sobre o o feminismo, o machismo, sobre mim mesmo, sobre as violências sofridas pelas mulheres, sobre relacionamentos, sobre sexualidade, entre outros.
Também li seu livro de não-ficção chamado Não quero ter filhos: e ninguém tem nada com isso, cujo tema é superrelevante e que costura muito bem elementos de teoria, autobiografia, jornalismo, pesquisa, etc.
Saliento que meu objetivo não é só elogiar a Bruna e atiçar a curiosidade de vocês para conhecer a autora. Nem estou colocando links dela aqui. Quero mais colocar na rede uma reflexão que achei melhor não ficar confinada na minha mente.
Li Com todo o meu rancor em poucos dias. A linguagem utilizada e os capítulos curtos tornaram minha incursão bem fluida, ainda que o fluxo do tempo na história não seja linear. Basicamente, o livro conta a história de como Ana se vinga de seu ex (Matheus, que não era oficialmente um namorado), após passar uma escalada de violência no relacionamento.
Tive contato com algumas resenhas do livro antes de comprá-lo. Com base nelas, esperava que Ana fosse mais antipática no começo, conquistando a simpatia com a desenvolvimento da história. Não é minha intenção criticar o livro (se essa era a intenção) ou quem escreveu sobre ele. Ocorre que senti o oposto.
Não desenvolvi uma empatia com Ana conforme descobria a causa de seu sofrimento, o que motivou sua vingança. Também não ocorreu o contrário, de criar uma antipatia pela personagem ao longo do texto. Me identifiquei bastante com Ana no começo. Porém, simplesmente perdi a conexão com a personagem em algum ponto. No entanto, justamente o ponto que aparentemente parece mais “frágil” do texto que o torna mais interessante.
Toda ficção traz implícita uma suspensão de descrença. O romance não chega a forçar a barra neste sentido. No máximo romantiza a vida no Uruguai, afinal é um romance e não uma reflexão sobre o cinismo contemporâneo. Bruna também não entra em maiores detalhes em relação aos disfarces ou às personas de Ana, que me deixaram muito curioso inicialmente. No fim, fiquei um pouco frustado por não serem mais explorados, mas o romance se desenvolveu bem sem isso.
Mesmo que a narrativa passe longe de contar a história da perspectiva de Matheus, não tive a impressão de que o antagonista fosse um “mau-caráter”, agindo deliberadamente no intuito de humilhar Ana. Ele parece mais alguém incapaz de enxergar o machismo para além da cartilha do que aquilo que chamamos de esquerdomacho recebe.
Sua visão de mundo não evolui, não há uma consciência reflexiva sobre suas ações. Ele apenas reproduz um comportamento que é o machismo e de como as relações devem ser, de modo que ele se sinta menos culpado e ainda assim possa aproveitar dos benefícios do sistema. Isso não faz o personagem menos realista, pelo contrário. É isso que o torna ainda mais humano, tal como Hannah Arendt descreve Eichmann.
Não se trata de defendê-lo por ser homem, ainda que inconscientemente possa ser. Matheus não é inocente. Como todo gaúcho nascido nos anos 80/90 vejo que já reproduzi muitas das violências cometidas por ele. Nós, homens, nos aproveitamos de maneira mais ou menos consciente do sistema patriarcal. Este “mais ou menos” não está aí à toa.
É importante não atribuir tudo às estruturas, não se pode negar que há um certo nível de consciência por parte de quem agiu, negar que há perversão e prazer no exercício do poder. Saber disso - ainda que haja a sensação de uma mão invisível conduzindo aqueles que abusam para um caminho que parece inevitáve - é justamente o que permite mudar os comportamentos.
No entanto, foi uma coisa bem pessoal, que me afastou da protagonista. Não se trata de nada na estrutura do romance. É algo que só senti por ter passado por uma desilusão amorosa incomensurável, atrelada a um relacionamento abusivo. Em determinado momento você se dá conta que nunca fará o outro sofrer algo sequer algo próximo do que você sofrou. A dor nunca irá se equivaler. Por outro lado, nada que o outro faça irá fazer você sofrer mais do que antes.
O que aprendi de mais importante com este livro é que mesmo Com todo o meu rancor a vingança é impossível.
# Notas de um sociólogo de boteco: coletânea com um caráter mais teórico, sociológico, porém sem o rigor acadêmico. Inclui principalmente comentários sobre atualidades e assuntos em voga no debate público. No entanto, pode incluir reflexões e pensamentos de um cunho mais intimista, menos centrado em fatos ou em acontecimentos. O tom é de uma conversa de mesa de bar, regado a cerveja. No início da noite é comum que as conversas sejam educadas, sem elevação de vozes. Volta a meia há uma discussão acalorada sobre política. Há também os diálogos e monólogos mais filosóficos, íntimos, em tom de confissão de fim de noite, que fazem de recém-conhecidos melhores amigos ao menos por uma noite. 


