O peixe
# Notas autoficcionais
Na semana do meu aniversário de 19 anos saí da casa da minha mãe e fui morar sozinho. Mal tinha dinheiro para pagar as contas, mas precisava de um canto só para mim, então aluguei um apartamento em um lugar que mais parecia um daqueles cortiços do século XIX. Entrava-se no prédio por uma garagem. A fachada, ao lado, era de uma grande casa que parecia bem antiga, onde se estabelecera um salão de beleza. O acesso para os apartamentos ficava no meio da garagem, era preciso subir três andares de uma escada fria para chegar no corredor de onde, no fundo, no último apartamento, eu morava. De lá tentei não ouvir tudo o que os vizinhos falavam - às vezes tinha a impressão que eu conseguia ouvir até os pensamentos deles. Vivíamos, por assim dizer, todos juntos em uma grande pensão, apesar de eu sequer saber o nome do senhor que morava ao lado. Os apartamentos eram todos um do lado do outro, pequenos, parecidos em sua estrutura. O meu tinha uma antesala (que eu chamava de entradinha), tamanho 2x2, que dava acesso aos outros cômodos e sequer comportava um mancebo. O banheiro ficava em frente à porta de entrada. De um lado um quarto (que era sala também no meu caso) e de outro uma cozinha. O lado bom de morar aos fundos era uma grande janela na cozinha, o que não era possível nos outros apartamentos, exprimidos no meio. Essa mesma janela tinha um lado ruim, que logo explico, vou seguir na geologia arquitetônica. Ainda havia uma pequena área de serviço do lado de fora da cozinha, com um tanque para lavar roupa. O banheiro não tinha boxe, o que fazia com que sempre que eu tomava banho a água se espalhasse até a antessala, alagando tudo. Odiava sair do banho molhando os pés e ter que secar tudo depois. Comprei uma cortina vagabunda que se segurava fragilmente pela pressão, sem precisar furar as parede. No chão improvisei com um durepox, fazendo uma espécie de muro que separava o chuveiro do resto do banheiro. Funcionava até certo ponto, logo a água se infiltrava, molhando alguma coisa, nada fora do controle. Como nunca tive habilidades para cuidar das coisas da casa, volta e meia eu tinha que refazer a obra, comprar durepox, juntar a cortina caida no chão. Agora o lado ruim da janela: o proprietário do prédio possuía uma licença do Ibama para ter animais silvestres. Eles ficavam no pátio, com vista direta da janela da cozinha, e eu podia ouvir os galos que eu nem sabia que existia, se comunicando nas madrugadas no centro daquele coração pulsante que era a Cidade Baixa, bairro conhecido pelos bares e pelas pessoas em situação de rua, local em que me criei em Porto Alegre. Os galos não eram um grande problema. Ocorre que a presença de um ganso tornava as coisas insalubres. Ademilson (apelido dado por mim, será que ele tinha nome?) era exageradamente barulhento, sempre fazia escândalo quando alguém ou algo se aproximava. Talvez esteja exagerando ao comparar com morar ao lado de um pronto-socorro, com a janela apontando diretamente para a garagem onde ecoam sirenes de ambulância. Até hoje sustento que aquele ganso era treinado para perceber os dias que eu podia dormir até mais tarde. Fazia questão de bradar em consoante com o zunido que acompanhava a ressaca de um garoto notívago explorando seus limites - e os dos vizinhos quando a reunião com amigos ocorria naquele minúsculo habitat. Claro que durante toda a semana, não se ouvia um pio madrugal do animal, o Ademilson no caso.
Apesar da fauna selvagem que podia ser apreciada pela janela, havia um sentimento de solidão. A vida pode ser meio cruel para quem sai de uma família grande, procurando a solidão, quando a encontra. Um ser humano para dividir a morada não caberia alí (depois coube, quando meu irmão mais novo se mudou para junto de mim na pocilga). Na época eu não suportava gatos, com suas unhas, aquela caixa de areia sempre suja e seu olhar de desdém. Não podia ter um cachorro no cubículo. Eu precisava de uma companhia, mas uma companhia silenciosa. Sem falar no fato de que não ia conseguir levar um cão para passear, fazer exercícios e suas necessidades fisiológicas na rua. Minha rotina de acordar cedo, sair para o trabalho de manhã e voltar apenas tarde da noite, depois da faculdade, não combinava com ter um animal de estimação, iria ser muita crueldade com um ser mantê-lo trancado dentro de um apartamento por horas a fio, quando eles tinham necessidade de outros seres. E qual o bicho mais adequado para a minha situação? Não sei de onde surgiu a ideia. Comprei um peixe.
Ainda que peixes também não mereçam viver assim, pelo menos eles se adaptam sem reclamar. E não tem animal mais limpo do que um que já vive na água, pensei. “Peixes não fedem”, cantava o Bob Generic, personagem do desenho animado O Fantástico Mundo de Bob, que eu assistia quando era criança. O Bob era um personagem fantástico mesmo, uma criança que via o mundo com uma imaginação sem igual. Ele vislumbrava o mundo dos adultos literalmente. Se diziam para ele que o minhocão ia passar, imaginava uma grande minhoca servindo de ônibus, que levava as pessoas em cadeirinhas na garupa Crianças geralmente não entendem ironia, o que é uma falha, mas elas conseguem enxergar o óbvio sobre algumas coisas da vida que nós adultos não conseguimos ver. Elas conseguem ser muito mais sensíveis do que nós, que já estamos tão calejados da vida que temos dificuldade para demonstrar o que sentimos, que temos dificuldade para dormir quando temos sono, que não choramos quando estamos tristes ou simplesmente com fome. Isso até certa idade, onde elas passam a ficar manhosas, mimadas e até mesmo mesquinhas, em função do mundo que as cerca. É assim que elas se tornam o que nós somos, adultos, maduros, fingidos, cascudos, inteligentes e preparados para lidar com as privações materiais e emocionais de viver em um mundo que diz que podemos ter qualquer coisa, mas que na verdade é um mundo de escassez, cheio de vazios. Dito isso, um peixe era barato de manter.
Incorporei ele na rotina. Dava de comer todo o dia para o bicho e o chamei de Ariosto Culau II (segundo), um “trocadilho” com relação a um político/gestor que foi dar uma palestra na minha faculdade sobre gestão e sobre como fazer uma boa administração pública. Ele chegou com toda a pompa, indicado por um professor meu que trabalhava no governo Yeda Crusius (PSDB). Jovem, formado numa escola de administradores de Minas Gerais, ocupava um cargo político na secretaria de planejamento. Alguns meses depois vi na TV que foi denunciado por estar envolvido em um escândalo de corrupção, a chamada Fraude no Detran. Ariosto, o homem, foi pego tomando um chope e comendo iscas de peixe (pura ironia) com um empresário envolvido em um grande escândalo de corrupção que afetou diretamente o governo do partifos dos parlamentaristas. No fim, acabei simpatizando com o cara pelo chope e pelo peixe. Claro que o escândalo deu em pizza. O peixe não chegou a ver seu nome profanado. Morreu antes disso.
Chegou em um saquinho com água e passou o seu primeiro dia em uma panela com água fria. Leitor, calma, não pensei em cozinhá-lo em nenhum momento. Logo, arranjei um aquário por alguns trocados. Não me perguntem que tipo de peixe era o Ariosto, eu não sei nada de taxonomia dos peixes, só posso falar sobre a vida e a personalidade dele. Entretanto, sem base de comparação, já que nunca vivi com peixes antes, levei horas para compôr estas frases que vão descrevê-lo. Ariosto era um… peixe. Pequeno, levemente azulado. Nadava de um lado para o outro, nas vezes que notei sua presença. Tinha grandes olhos que não fechavam nunca e ficavam me encarando enquanto eu dormia. Gosto de pensar que o Ariosto cuidava de mim, atento como um cão. Às vezes calmo e tranquilo. Em outras, porém, senti que tinha o espírito de um pequeno tubarão, se movendo agressivamente no pequeno aquário. Sempre sozinho.
Acho que peixes de aquário são animais solitários, não importa em quantos estejam. No meu caso, ele representou exatamente isso. Das poucas coisas que entendo de peixes, uma delas é que certos tipos de peixe, por mais fofinhos que possam parecer, não podemos colocar no mesmo espaço dois deles. Um acaba matando o outro. Peixes sequer fazem sexo, se reproduzem à distância. E vivem suas vidas sem se preocupar com o vazio que é a vida, a imensidão que é um oceano. Será que um peixe já refletiu sobre como um rio nunca é o mesmo quando passamos duas vezes por ele? Ele não se preocupa onde vai desembocar, desde que tenha condições propícias para a sua sobrevivência e pode se adaptar até mesmo a viver dentro de um aquário, desde que o alimentem e o tratem adequadamente. Eu sempre me senti como um peixe num aquário em minha vida. Vagando de um lado para o outro, sem saber muito bem até onde iria chegar. Eu passava grande parte dos meus dias dentro do meu apartamento, dentro do meu quarto, dentro do meu aquário.
Aliás, teve vida curta meu Ariosto, acho que ficou lá em casa por umas duas semanas, até o dia que eu acordei e vi que o peixe estava boiando e não mais nadando. Pode ter sido culpa minha, o fato de que eu simplesmente não dava comida regularmente. Pode ter sido a água podre que eu dava pra ele, saída das torneiras, dos encanamentos e dos esgotos de Porto Alegre, e que sequer lembro de trocar. Ou então pode ter sido porque nunca comprei o negócio que faz bolhas e cria oxigênio para a água (mais provável causa da morte), sei lá. O aquário ficou por alguns meses em casa, como um relicário, até que eu me mudei e não sei que fim deu. Não suportei a ideia de comprar outro peixe, ainda que tenha pensando na ideia de um Ariosto Culau III (terceiro).
Ariosto morreu. Independente da causa, para mim o Ariosto morreu simplesmente. Tive outros animais depois, gatos e cachorros, muito mais amorosos do que Ariosto. Nunca escrevi sobre eles. O peixe e eu tínhamos uma relação especial. Apenas ficávamos ali, naquele apartamento, naquele quarto, naquele aquário, na presença um do outro, cada um em seu espaço, eu na minha pequena vida, ele no seu pequeno tempo, juntos no pequeno cubículo, fazendo-nos companhia mutuamente. Dois peixes cercados por quatro paredes, nascidos e criados sem cardumes, sem cobranças, sem trocas de carícias, sem palavras, suspiros, sem ciúmes ou carências, somente com aquele sentimento de que, naquele momento, de um modo muito particular e sem uma causa aparente, nós precisávamos um do outro. Até não precisar mais.
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# Notas autoficcionais: um prato com um pouco de salada, um pouco de droga, um pouco verdade, um pouco inventado. As notas podem até ser baseadas em fatos reais, tanto quanto em filmes, livros e outras estórias que ouvi ou li. Qualquer semelhança com pessoas, cachorros, piadas ou fatos é pura falta de imaginação.

