Um sonho
# Notas de um adicto safado
Eu acordei com a boca seca, sem saber como fui parar no sofá. Eu juro que estava dormindo na poltrona quando todos saíram de casa. A janela da sala aberta me lembra que é outro dia já. Me enrolo nas cobertas sem nenhuma vontade de dormir ou de acordar. Johhny que estava em meu quarto com a sua mulher passa na direção da cozinha.
- E ai, cara!
- E aí, meu. Que ressaca pqp, que noite louca. Foi muito afudê, mas to com uma vontade de cortar os pulsos com uma faca de serrinha pra acabar com o meu sofrimento - digo isso enquanto procuro por minhas calças embaixo das cobertas.
- Nem me fala, misturamos muita coisa ontem. Dá pra ver que a gurizada não sabe brincar. Eu me perdi pela linha de fundo, a Lana foi deitar e eu fiquei aqui na sala viajando.
- Ela ta aí?
- Não, já pegou a estrada pra Santa Cruz.
- Cara, tu viu minha calças aí?
- Ta aqui do lado do sofá.
Enquanto levanto pra buscá-la, só de cuecas no meio da sala, digo para o Johhny que não lembro como fui parar ali.
- É irmão, que loucura que foi. Também, tu tomou umas 10 garrafas de cerveja, acabou com o absinto e ainda tomou uma garrafa de vinho antes de dormir...
- Hey, eu não acabei com aquele absinto sozinho...
- É cara, eu também vi a fada verde. Ela estava deitada na cama quando eu fui deitar, diz o Johhny com um sorriso malicioso no rosto. Valeu por emprestar o quarto brother, te devo essa.
- Não foi nada cara, eu não ia deixar tu dormir com a mina aí na sala. Até porque ela tava cansada, precisava de um canto, e a gente ficou até as 4 jogando truco.
- Bom, eu vou ter que sair pra almoçar com um cliente. Mas deixa alguma coisa pra mim arrumar quando chegar, não vão fazer o trabalho todo sozinhos.
- Só troca o lençol da cama e coloca na máquina pra lavar.
Penso em ligar a tevê e ver o noticiário, mas lembro que é domingo, e eu não quero ver o Faustão ou o Gugu. Enquanto isso eu já arrumava o sofá cama e começava a recolher as garrafas da sala. Aquele cheiro de cerveja no ar, o chão grudando no pé. Vou na cozinha e tem um copo quebrado no chão. Alguém quebrou e nem juntou. Também, a luz da cozinha está queimada faz 6 meses e nenhum de nós se prestou a arrumar. Não teria como recolher os cacos na madrugada. Nisso levanta o Iuri, meu companheiro de casa.
- Bom dia, cara.
- Foi um belo de um estrago. Cuida que tem um copo quebrado no chão.
Ele se junta a mim na arrumação, recolhendo os cacos de vidro.
- Pior que eu preciso trabalhar hoje.
- Nem me fala, Ulysses. Eu passei a semana atolado em papel. Tem inspeção semana que vem e eu tava precisando organizar as coisas. Ainda bem que consegui terminar. Mas esse ano ta foda. Imagino pra ti que tem que viajar toda semana.
- Nem fala, só de ficar em casa essa semana já é um alívio.
Esse diálogo não ocorre num local só. Eu estava juntando as garrafas e latas de cerveja da sala, enquanto o Iuri preparava pra passar um pano. Não dava pra agüentar aquele cheiro de cerveja e o pé grudando no chão, por maior que seja a preguiça e a ressaca. Fazemos só o básico. O Johhny que finalize o trabalho.
- Eu tenho que trabalhar hoje!, penso em voz alta.
- Mas não sei se vou conseguir - respondo, agora só em pensamento.
Pego uma roupa para tomar um banho, quem sabe assim as coisas melhorem um pouco. Um café forte, muita água e algo pra forrar o estômago, eis a receita. Já estou quase acostumado com isso. A noite foi forte. Só que depois da noite vem o dia e eu preciso trabalhar.
Entro no banho, com uma sensação febril, que eu sei que é só ressaca. A água na cabeça conforta, relaxa. O box do chuveiro é um pequeno cubículo que faz o homem se reencontrar com parte de sua natureza perdida. Nu, preso dentro daquele espaço com seus pelos e sua sujeira, a água batendo na cabeça, o homem reencontra aquele animal que vivia na selva e se banhava em quedas d’água. Um ser quase hobbesiano surge naquele momento, um lobo, que luta com seus instintos contra a água que pode afogar ao mesmo tempo que fecha os olhos e se deixa sonhar, pensar na sua vida nem que seja por alguns minutos, enquanto a água corre. Há quanto tempo ando tão atarefado que nem mais consigo pensar na minha vida? Há alguns meses tenho essa sensação que estou preso dentro de um sonho. As coisas acontecem alheias a mim ao meu redor, como se eu não tivesse o menor controle sobre o que acontece com a minha vida. Pessoas aparecem e somem aleatoriamente, em noites de muita bebida quando somos os melhores amigos do mundo, os amantes mais apaixonados, os irmãos inseparáveis. E quando acordo no outro dia não sei se aquilo foi real. As coisas continuam a vir sobre mim - trabalho, responsabilidades, pessoas - como que colocadas lá pela perversidade da minha mente afetada pela languidez de não saber como eu fui parar ali. Há alguns anos minha vida estava sob controle. Vivia na merda, trabalhava feito um louco, mas tinha sonhos, planos e mais do que isso, eu tinha um planejamento, objetivos e uma metodologia para alcançar aquilo. Hoje, eu não sei o que vou fazer da vida, se vivo aqui ou lá. Estar viajando para outra cidade à trabalho toda a semana me faz sentir que tenho duas vidas, sobrepostas. E nenhuma delas faz sentido. Em nenhuma delas eu controlo o que acontece comigo. Eu consegui tudo o que queria, dinheiro, sucesso profissional, uma casa e um carro. Eu realizei meu sonho. E agora sinto que estou preso neste sonho, sem conseguir acordar. E a pior coisa é acordar no outro dia e ver que tu continuas preso no sonho. A realidade da vida eu sei que não é esta. O sentido de estar preso na Matrix não é que estamos presos em um sonho e vamos acordar pra vida real tomando uma pílula. A realidade não é o meu sonho, trabalho, emprego, uma secretária que ajuda a resolver os meus problemas, o sushi no fim de semana, o supermercado que me vende o álcool e o cigarro, os bares e as mulheres nestes locais, amigos de copo, amores engarrafados, o Shopping Center em que vou nos dias de semana quando não há muita gente e fico procurando coisas para gastar o dinheiro vil que ganhei com muito sacrifício. A realidade do mundo é cruel, é exploração, é a batalha do trabalhador para sobreviver, do professor para dar uma aula e pagar as contas com o salário parcelado, é o cara que trabalha no frigorífico cortando pescoço de frango oito horas por dia para chegar em casa e assistir as merdas que falam no jornal nacional, a TV dizendo pra ele que a situação é uma merda e que ele tem que se acostumar porque as coisas vão ficar assim por muito tempo ainda, inventam uma crise, justificativas econômicas, o livre mercado, para fazer tu te fuder e se calar. E meus sonhos são tão burgueses hoje em dia. Pegar a minha moto e ir pra estrada, gastando dinheiro sem nada produzir. Hoje eu só quero escrever meus textos enquanto saio por aí. E essa é a banalidade do sonho. Um sonho que dura algumas semanas durante as férias e nos faz voltar para o nosso lugar, para o nosso trabalho maçante, para a casa que não pega sol como queremos, para a louça suja a ser lavada, para nossos amigos e nossos amores – estes sim, vão e vem. Eu queria ter um sonho real, algo por fazer, um plano, um objetivo.
Nisso eu acordo da minha viagem, do meu sonho dentro do sonho. Quanto tempo eu fiquei aqui, embaixo do chuveiro? Meus dedos já estão levemente enrugados. Eu saio do banho renovado, ainda que levemente alcoolizado da noite anterior, mas disposto a mudar o mundo e a mim mesmo. Coloco minha roupa lentamente, o desodorante está no fim, preciso comprar mais no mercado. E papel higiênico. Vou na cozinha preparar um café e volto para o meu quarto, minha escrivaninha, para o meu mundo real, o meu sonho. O objetivo da vida? dar conta da pilha de papéis que se acumularam na semana.
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# Notas de um adicto safado: reúne escritos que envolvem em sua maioria contos e crônicas. Aqui o autor é ele também um personagem. Carregam marcas de batom no colarinho, manchas de vinho incrustada nos cantos, canudos usados como marcadores de página e furos causados pela brasa de cigarros.

